O Homem Amarelo – Conto (Almir Zarfeg)
10 de outubro de 2020

O bicho homem era amarelo que nem uma banana madura, o Cristo pintado por Paul Gauguin ou os girassóis de Van Gogh. Tão quente que era capaz de nos deixar ansiosos. E lelés da cuca.
Chegou chegando e, porque não dizia palavra, ninguém sabia de onde vinha. Se era chinês, japonês ou coreano. Mongol?
Para dificultar ainda mais a identificação, não era capaz de escrever uma única palavra em português, nem ideograma, ou desenhar um sinal com fumaça no céu, como os índios apaches.
Mas sua presença se impunha no ambiente com aquele amarelo que tomava conta de tudo e todos, como um sol que aquece a pele da gente.
Com o passar do tempo, as pessoas se acostumaram com a presença do homem, que, a bem da verdade, não precisava dizer a que viera. Sua presença bastava, de modo que ninguém mais queria saber quem era o tal, de onde vinha, para onde pretendia ir.
Na prática, nós fomos nos acostumando com a presença dele ou, melhor dizendo, com o amarelo que ele trazia consigo. A rigor, ele era amarelo, estava impregnado de amarelo. Ser humano e cor eram inseparáveis.
– Sem a roupa amarela, como ele será? – quis saber Giu Jorge.
– Boa pergunta, mas não tenho a resposta – respondeu Gê Geraldo, dando um jeito de soltar seu advérbio predileto: “Cordialmente”!
Aquela conversa era pouco ou nada esclarecedora, ou seja, nós confundíamos o amarelo com a roupa do homem amarelo. Mas aquele ouro seria a vestimenta ou a pele dele?
Àquela altura dos acontecimentos ninguém se importava se o homem vestia alguma coisa amarela ou se aquilo, que alguns diziam ser a roupa, era a própria pele dele.
Gê Geraldo – que além de cordial, era muito observador – notou que a boca do bicho homem era bem pequena, miudinha, enquanto o nariz se impunha de uma maneira desconcertante.
– Narigudo, sim, mas não como Pinóquio – observou Gê.
Na verdade, aquele nariz estava mais para o nariz do ator francês Gérard Depardieu. Ou quem sabe um nariz de palhaço, mas amarelo e não vermelho!
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– Nem uma coisa nem outra. Meus amigos, não tem nariz coisa nenhuma. Aquilo é uma gema de ovo! – anunciou Dimas Oliveira, à noitinha, no barzinho Fla & Mengo, passando em seguida a descrever os tipos dos narizes brasileiros: negroide, romano e asiático…
– Pois para mim só existem dois tipos: curto e comprido – interveio Valdim, já medindo o nariz que Deus havia lhe dado e com o qual era feliz.
Mas tudo isso, que fique claro, não passava de suspeita ou mero exercício de adivinhação, porque era impossível, a olho nu, tirar maiores conclusões sobre o nariz do ilustre forasteiro.
Porque, de uma vez por todas, aquele amarelão dificultava qualquer tentativa de definir as feições do bicho homem. Se não éramos capazes de atinar se ele estava vestido assim ou assado, como iríamos operar aquela aritmética, ainda que elementar: quantos olhos, qual tamanho do nariz, onde terminava o braço e começava o antebraço?
O certo é que as perguntas continuaram sem respostas um tempão, enquanto a amizade entre o amarelo e as demais cores só aumentava. Quando misturávamos uma cor quente com uma fria, então, o milagre acontecia. Era bonito de se ver. Era um espetáculo para os olhos e – por que não? – para o coração.
Mas é preciso informar, a bem da verdade, que muitos de nós se queimaram ao tentar uma mistura equivocada, vermelho com amarelo, por exemplo. Zé Bicha teve as orelhas queimadas, coitado! Isso para ficarmos no caso mais notório ali na redondeza.
Foi numa sessão de mistura de cores que a professora de Artes, dona Maria Zilda, teve uma ideia para lá de genial: como esfriar uma cor metida a besta, tipo amarela, sem maiores complicações.
– Como assim, professora? Nos oriente, por exemplo, mulé abençoada!
– Muito simples, pessoal: com um balde de água fria! Se ele é capaz de ressuscitar até morto, que dirá esfriar uma cor quente!
A professora explicou tudo bem explicadinho, ainda fazendo cara de agradecida, como se por trás daquela explicação tivesse uma segunda intenção. Ou mais de uma intenção.
Dois dias depois da aula esclarecedora da professora Maria Zilda, o homem amarelo levou um balde de água fria na cara. E o que era, até então um mistério para todos nós, acabou esclarecido publicamente.
– Vejam só: não é um homem amarelo, mas um cão amarelo – anunciou Gê Geraldo, fazendo as vezes de porta-voz da comunidade.
Para sermos mais exatos, era um labrador amarelo com um nariz tamanho família. Aliás, tudo nele era familiar: os olhos, a boca, as orelhas, enfim, até o temperamento amistoso.
– Amarelou tem que rezar! – gritou um gaiato no meio da pequena multidão surpresa que se formara.
E não é que, naquele instante mágico, o bicho foi capaz de articular uma palavra, bem estranha, mas ainda assim um achado linguístico: Corona!
– Enfim, povos e povas, uma mistura de cor e coração. Cordialmente – elucidou bonito Gê Geraldo.
Não demorou mais que alguns minutos para que o mesmo GG, com a aprovação dos presentes, batizasse o improvável homem de “Corona, o cão do amor”!